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Germânia (98 d.C.) - Tácito

I
Toda a Germânia está separada das Gálias, da Récia e da Panônia pelo Reno e Danúbio; da Sarmátia e da Dácia por alguns montes e por seus mútuos temores. [2] O resto é circundado pelo Oceano, abrangendo golfos espaçosos [3] e vastas ilhas, com habitantes e reis que a guerra nos fez descobrir recentemente. O Reno nasce de um despenhadeiro inacessível dos Alpes Récios, e depois de torcer um pouco para o poente desemboca no oceano setentrional. O Danúbio, espalhado de um monte pouco elevado e de acesso suave no monte Abnoba, passa por muitos povos até que se lança ao Ponto Euxino por seis bocas [4], a sétima some nos pântanos.

II
Creio que os germanos são naturais da própria terra e que jamais se mesclaram com a vinda e hospedagem de outros povos; pois, antigamente, todos que emigravam não iam por terra senão por mar e são raros os navios que de nosso mundo se aventuram a penetrar no Oceano imenso e, por assim dizer, oposto ao nosso [5]. Ainda sem o perigo e o horror de um mar desconhecido, quem abandonaria a Ásia, África ou Itália para dirigir-se a essa Germânia áspera, de clima duro e de aspecto tão ingrato, não sendo para seus naturais?

Entoam velhos cantos (que são sua única história e todo os seus anais) ao deus Tuistão, nascido da terra, e a seu filho Mano, como raízes e fundadores de sua nação. A Mano dão-lhe três filhos, dos quais tomaram nome os ingevões, que são os mais costeiros, os herminões, que ocupam o centro, e os istevões, que são os restantes [6]. Alguns, porém, baseados em tal antigüidade, aumentam o número dos filhos do deus e aludem à denominação de mares, gambrívios, suevos e vândalos, afirmando que estes são seus verdadeiros e primitivos nomes e que o de Germania é novo e foi incorporado há pouco, pois os primeiros que passaram o Reno, desalojaram os galos, e agora se chamam tungros os que se chamavam germanos, de modo que um nome que era só de uma parte do povo foi prevalecendo até o ponto em que, desta denominação, tomada a princípio pelos vencedores para inspirar terror [7], e adotada depois por todo o povo, chegaram todos a chamar-se germanos [8]. Também falam que houve entre eles um Hércules [9], a quem cantam como herói sem par quando se dirigem ao combate.

III
Possuem também outras canções que chamam bardito [10], cuja entoada anima-os ao combate e anunciam à boa ou má fortuna que vai ter lugar, segundo o efeito que lhes causa o som. Mais que harmonia de vozes, aquilo parece ser a expressão de seu valor, pois procuram sobretudo produzir um som áspero e um murmúrio entrecortado e colocam o escudo à boca para que a voz ressoe e fique mais cheia. Dizem alguns que Ulisses, ao chegar a esse Oceano em sua grande e fabulosa viagem, chegou à Germânia e fundou e deu nome a Arciburgio [11], cidade situada às margens do Reno e que ainda está habitada. Dizem que foi encontrado um altar consagrado a Ulisses com o nome de Laertes, seu pai, e que ainda existem nos confins da Germânia e da Récia alguns monumentos e tumbas com inscrições gregas. Não tenho intenção de confirmar nem de refutar com argumentos estas notícias; cada um pode dar-lhes crédito ou não segundo sua inclinação.

IV
Sou da opinião dos que crêem que os povos da Germânia não se alteraram por casamentos com nenhuma outra nação e que são uma raça singular, genuína e semelhante só a si mesma. Portanto, possuem uma perfeita analogia de figura entre eles, ainda que tão numerosos; são de olhos azuis e selvagens, de cabelos ruivos, corpo avantajado e forte só para o ataque violento, mas não suportam com resignação os trabalhos e as fadigas, metem-lhes medo o calor e a fadiga, todavia toleram a fome e o frio por afeitos à avareza e à inclemência do clima.

V
Este, se bem que desigual em algumas regiões, é universalmente sombrio pelos muitos bosques que o formam e desagradável pelos muitos pântanos que o encharcam. Para o lado das Gálias é mais úmido e mais exposto aos ventos para o lado da Nóvica [12] e da Panônia [13]. É fértil em grãos porém, não em árvores frutíferas. É fecundo em rebanhos, mas de proporções reduzidas. Os bois não apresentam pela conformatura e os adereços que lhes ornam a fronte são pobres no tamanho [14]. Amam a abastança e são estas já citadas as suas únicas e mais gratas riquezas. Não sei se foi por mal ou por bem, o certo é que os deuses lhe negaram o ouro e a prata.

Contudo, não me atreveria a assegurar não existia alguma mina desses nobres metais. Quem, porventura, já o investigou? O fato é que eles não lhes emprestam o valor que lhes dão os demais povos. Entretanto, vêm-se ali vasos de prata que costumam presentear os seus embaixadores e príncipes. Porém, não os estimam mais do que se fossem de barro. Sem embargo, os que vivem em nossas fronteiras, tendo em vista o comércio, apreciam o ouro e a prata e, por isso, selecionam algumas espécies das nossas moedas. Os do interior, atendo-se à velha usança, permutam as mercadorias com a maior simplicidade, trocando umas coisas por outras. Preferem a moeda de cunho antigo e, por esta razão, mais conhecida como serratos e bigatos [15] e se inclinam mais pela prata do que pelo ouro, não em virtude de pontos de vista particulares, mas porque as moedas de prata é dinheiro mais cômodo para os que mercadejam objetos comuns e baratos.

VI
Como se pode supor pelas suas armas, não há ali ferro em abundância. Pouco se servem de espadas ou de compridas lanças. Os dardos que manejam — “frâmeas” na língua indígena — são aparelhados de um ferro delgado e curto, porém tão agudo e de tão fácil prática que, de acordo com as necessidades, com eles pelejam de perto ou de longe. Os cavaleiros se contentam com o escudo e com uma frâmea. A infantaria está equipada também de armas de arremesso e cada soldado carrega muitas delas e as conseguem lançar a longas distâncias. Andam nus ou ligeiramente vestidos de um curto saião. Não há nenhum adorno em seus vestuários. Apenas os escudos são pintados de cores agradáveis. Poucos trazem lorigas e um ou outro, capacete de metal ou couro. [16]

Os cavalos não primam pela elegância do porte nem pela agilidade e nem tampouco são treinados na variação dos movimentos (ou manobras) como é usual entre nós. Adestram-nos a avançar em frente ou a voltar à direita, em linha tão compacta que nenhum pode ficar para trás. Tudo bem considerado, conclui-se que sua força principal reside na infantaria e, por esse motivo, combatem de roldão, afinando, admiravelmente, o prélio eqüestre com a rapidez dos infantes, pois estes recrutados entre os jovens mais ágeis, são colocados na vanguarda. Há deles um número limitado: cada aldeia fornece “cem”. Daí o nome que lhes dão. Ficou-lhes como título de dignidade de honra o que a princípio não era senão um número (pois “cem”). O exército é formado em cunha. O retirar-se para depois tornar a ofensiva é considerado mais ardil e prudência do que medo. Por mais duvidosa que lhes pareça a batalha recolhem os corpos dos seus soldados tombados em campo. Consideram crime e opróbrio o perder o escudo no entrebate: ao soldado assim informado, não lhes permite assistir aos sacrifícios, nem tomar parte nas assembléias. Muitos destes, embora escapos à batalha, põem termo à ignomínia, enforcando-se.

VII
Os reis são eleitos conforme a sua nobreza, mas os capitães, escolhidos segundo a sua capacidade. O poder dos reis, entretanto, não é ilimitado ou absoluto e os chefes comandam mais pelo exemplo dos seus atos e pelo atrevimento das suas ações do que pela força da sua autoridade. Se se mostram ousados e destemidos e conseguem arrebatar a vitória, governam sob admiração dos povos. Entretanto a ninguém, a não ser aos sacerdotes, se consente o direito de açoitar, prender ou matar: a pena não é considerada como castigo ou execução das ordens de um comandante, mas imposta pelos deuses que, como crêem, presidem aos combates.

Por esse motivo levam ao campo de refrega certas imagens e simulacros retirando-os dos bosques sagrados. O que, porém, representa o principal sentido da sua valentia é o fato de que em lugar de constituírem um aglomerado de gentes as mais diversas, pelo contrário, cada turma de cavalaria e cada esquadrão de infantaria são formados de homens da mesma família ou então por membros de nações aliadas. Ao se colocarem para o combate, postam perto de si tudo quanto mais amam: afim de que, assim, possam ouvir o vozerio das mulheres e a gritaria das crianças, fiéis testemunhas da sua coragem e cujos louvores são os de que mais prezam e mais gostam de ouvir. Toda vez que recebem ferimentos vão mostrá-los às mães e às esposas e não se atemorizam de contá-los e de examiná-los com cuidado: antes, muito embora tal situação, dedicam-se à exortar os companheiros e a provê-los de víveres.

VIII
Há memória que algumas hostes que estavam desmaiando e cedendo foram refeitas pelas mulheres que, pela insistência de seus rogos e seus seios desnudos, mostravam a eles a iminência de seu cativeiro, que eles temem com muito mais horror para suas mulheres que para si. Tanto é assim, que a melhor maneira de assegurar a lealdade das cidades é exigir-lhes donzelas nobres como reféns. Além disso, acreditam que o sexo feminino possui algo de divinatório e de profético, pois não desprezam seus conselhos nem deixam de cumprir seus pedidos. No tempo de Vespasiano [17], vimos Velada ser honrada em muitos lugares como divindade. Em outro tempo veneraram Aurinia e muitas outras, mas não por adulação nem para divinizá-las.

IX
Sua divindade mais venerada é Mercúrio. Para aplacar-lhe as iras em certos dias do ano julgam lícito imolar-lhe vítimas humanas. Aplacam a Hércules e a Marte com animais rituais. Alguns dos suevos também fazem sacrifícios a Ísis. Não pude averiguar qual a causa ou a origem desse culto, embora a mesma imagem, em forma de nave libúrnia [18], mostra que o culto é estrangeiro. Seja como for, pensam que encerrar os deuses entre quatro paredes e representá-los sob forma humana lhes parece contrário à majestade celeste. Por esse motivo, consagram-lhes selvas e bosques, e dão nomes de deuses a esses misterioros lugares que só olham com olhos reverentes.

X
Nenhum outro povo leva mais a sério os augures e as adivinhações. A prática de tirar as sortes [19] é simples: dividem um ramo de árvore frutífera em pequenos pedaços que, depois de marcados com certos sinais, são lançados a esmo sobre uma veste branca. A seguir, o sacerdote da cidade, se se trata de negócio público, ou o pai de família, se se trata de assunto doméstico, após haver deprecado os deuses, erguendo os olhos ao céu, toma de três fragmentos da haste, um de cada vez, e faz a interpretação de acordo com os sinais previamente impressos. Se as decisões são contrárias aos que se esperava, naquele dia não se realizam mais consultas a respeito. Se, porém, são favoráveis, requer-se a confirmação dos auspícios. É uso ali, também, consultar-se o canto e o vôo das aves.

Contudo, constituem auspícios peculiares desta raça os presságios tomados do relinchar dos cavalos. Estes animais são sustentados à custa do erário nas próprias selvas e nos bosques sagrados. Tem o pêlo branco e jamais foram profanados nos serviços dos homens. Atrelam-se a um coche santificado e o sacerdote, ou o rei, ou o principal da cidade, os acompanham e lhes observam o nitrido e o respirar. A nenhum outro auspício dão tanto crédito como a esta. Não somente o povo mas também os nobres e os grandes e os sacerdotes vêm nestes cavalos confidentes dos deuses, quando eles, na realidade, não passam de simples ministros. Há ainda outra espécie de auspício, por meio do qual procuram saber antecipadamente o resultado das guerras mais importantes. Seqüestram, não importam como, um prisioneiro de nação inimiga e o obrigam a lutar com um dos seus melhores guerreiros. Ambos os contendores se batem, cada qual com as armas do seu país. A vitória deste ou daquela é o presságio do futuro.

XI
Os príncipes [20] deliberam a respeito das coisas mais simples. As de maior importância são tratadas em assembléia geral, mas de modo que, mesmo os negócios cuja solução cabe ao povo sejam em primeiro lugar debatidos entre os maiores. Reúnem-se para tratar dos interesses públicos — caso não sobrevenha um imprevisto — em determinados dias, pela lua nova ou no plenilúnio, pois consideram este tempo como o mais favorável para qualquer empreendimento. Não contam como nós os dias, mas as noites e é por este sistema que datam e autenticam todos os documentos: para eles a noite precede o dia. A liberdade de que gozam os arrasta a certos abusos: não se dirigem, em conjunto, às assembléias, como o povo que venha a ser convocado para tal: reúnem-se a pouco e pouco, lentamente, no que gastam dois ou três dias.

Quando acham que há número suficiente começam a deliberar, de armas na mão. O silêncio é imposto pelos sacerdotes, aos quais cabe também o direito de punir. Em seguida, o rei ou o chefe se faz ouvir na sua exposição e, após este, os demais segundo a idade, nobreza ou fama adquirida na guerra, ou de acordo com a sua eloquência, valendo nisto mais a persuasão do que a autoridade temporal do orador. Se não lhes agrada a proposição, rechaçam-na com grande sucesso. Se merece acolhimento, aprovam-na, brandindo as frâmeas. A aprovação mais honrosa é a feita com a agitação das armas.

XII
Qualquer pessoa pode acusar outra perante a assembléia, mesmo em se tratando de crimes capitais. As penas variam de acordo com o delito. Para os traidores e os trânsfugas, o enforcamento nas árvores. Os covardes ou efeminados, os infames pelo tráfico do corpo são afogados nos pântanos com uma grade em cima do corpo. A disparidade do suplício tem como mira tomar conhecida a punição dos crimes e ocultar os flagícios. Contudo, nos delitos menos graves há proporcionalidade na pena: aos convencidos ou confessos, a multa de uns tantos cavalos ou cabeças de gado. Parte da multa é paga ao rei ou a comunidade, parte ao ofendido ou aos seus parentes. Elegem igualmente nestas assembléias os chefes que administram justiça nas vilas ou nas aldeias. Cada qual é assistido por cem homens escolhidos entre o povo, que lhe servem de conselheiros e encarnam a autoridade.

XIII
Não tratam de nenhum negócio público ou particular senão armados. Entretanto, não fornecem armas a pessoa alguma sem prévia aprovação da comunidade, isto é, sem que o Estado a considere capaz de empunhá-las. Então, ali mesmo, na assembléia, um dos príncipes ou mesmo o pai ou parente armam o jovem com o escudo e a frâmea [21]. Esta representa entre eles a toga viril [22]; esta, a primeira distinção da mocidade: antes o mancebo era apenas membro da família, agora é um cidadão da república. Nobreza preeminente ou assinalados serviços paternos conferem aos filhos, embora de pouca idade, o título de príncipes. Estes se agrupam em redor dos quais robustos e da maior experiência que, por seu turno, não se sentem dominados por ver aqueles formando nas suas hostes.

Há mesmo entre os companheiros postos hierárquicos outorgados ao arbítrio dos comandantes e entre aqueles nota-se grande emulação. Os companheiros do príncipe procuram por todos os meios alcançar o primeiro lugar junto dele e os chefes põem todo o seu cuidado em ter muitos e valentíssimos companheiros. Considera-se fastígio e poderio o andar-se sempre acompanhado de um grupo de moços escolhidos. Em tempo de paz isto é levado a conta de ornamento, de fausto, mas em tempo de guerra, à de defesa. O avantajar-se aos demais em número e qualidade dos companheiros, não apenas dá fama e respeito, em face da sua tribo, mas também em relação às cidades circunvizinhas, pois atrai a amizade dos povos, que lhes enviam embaixadas, os mimam com presentes e, não raro, esse prestígio consegue evitar as guerras.

XIV
É desonroso para o príncipe ser excedido em bravura no campo de batalha pelos seus soldados, como é desonra para estes, em igual circunstâncias, não igualar o príncipe em valor. É porém, acima de tudo, opróbrio e covardia, sobreviver ao seu chefe morto na peleja. Defendê-lo, salvá-lo, enaltecer-lhe os próprios feitos, dourar-lhe a glória é o primeiro e o mais essencial dos compromissos assumidos sob juramento. Os príncipes combatem pela vitória e os que o obedecem, pelo príncipe. Se a comunidade a que pertencem [23] cai na pasmaceira e no ócio, durante longo tempo, a mocidade nobre passa, com armas e bagagens, alegremente, para os países que se acham em guerra: porque esta gente odeia a paz e o repouso e se lhe afigura mais fácil ganhar nomeada no arrostar perigos. Com tal estado de espírito, só é possível mantê-la, pois, sob a violência das armas. E torna-se impossível aos príncipes sustentar tal comitiva a não ser por meio de pilhagem e da guerra, portanto: da sua liberalidade exigem os que o cercam ora um bom cavalo, ora uma frâmea vitoriosa, tinta de sangue do inimigo. Além disso, os banquetes, embora sem requinte, porém abundantíssimos, substituem o soldo ou estipêndio. A munificência dos chefes é alimentada pela guerra e pelo saque. Mais facilmente se deixarão persuadir pela necessidade de provocar o inimigo, de se exporem aos ferimentos ou mesmo à morte do que pelas vantagens do cultivo das terras e pela promessas das abundantes colheitas. Demais, afigurar-se-lhes objeção e poltroneria adquirir as coisas com o suor do rosto, se o podem conseguir ao preço de sangue.

XV
Quando não estão empenhados em guerras, não obstante concedem algum tempo à caça. O maior tempo, entretanto, é consagrado à vadiagem, ao sono, e à glutonaria. Nenhum homem forte e belicoso se a inclina ao trabalho, pois entregam ao cuidado das mulheres as moradas, os serviços domésticos e os do campo. Assim, tanto amam a inércia como aborrecem o repouso. De acordo com a tradição, as cidades e os indivíduos devem enviar um presente ao príncipe, seja em gado, seja em frutos. Estas dádivas todavia, posto tomadas em conta de homenagem, servem para prover as necessidades reais. Apreciam sobremaneira os presentes dos povos vizinhos que lhes são feitos não só por particulares mas também oficialmente, pelos poderes públicos, tais como cavalos escolhidos, armas poderosas, jaezes, colares. Nós já lhes ensinamos a aceitar dinheiro também.

XVI
É sabido que os germanos não habitam em cidades cercadas nem admitem a construção de casas umas próximas das outras. Vivem divididos e separados, conforme lhes agrada a fonte, o prado, o bosque. Não edificam as aldeias como edificamos as nossas: os edifícios contíguos entre si. Circundam cada casa de certo espaço: ou por precaução contra incêndios ou para prevenir-se contra assaltos, ou por ignorância na arte de construir.

Tampouco usam a pedra ou a telha. Empregam na obra a madeira bruta, sem preocupação de sentimentos estéticos. Revestem algumas partes de terra tão pura e resplandecente que parece oferecer alguns traços coloridos, imitando pintura. Também costumam escavar subterrâneos, cobertos por cima com grande quantidade de esterco, que servem de abrigo para as pessoas e de armazém para os víveres: ali dentro o rigor do frio é atenuado e, se porventura se verificar a invasão do inimigo, este só rouba o que encontra à vista, mas o que está oculto ou enterrado escapa-lhe à rapina por não saber onde está.

XVII
A vestimenta comum é o saio, atacado com fivela ou, se não há, com uma espinha: o resto do corpo anda descoberto e por isso ficam durante dias inteiros em casa, junto ao fogo. Os mais ricos se distinguem pelo traje, não tão amplo como o dos sármatas ou o dos partos, mas bem ajustado e tanto, que se lhes desenham os contornos do corpo. Vestem-se do mesmo modo, de peles de feras: os que residem nas margens do Reno não dão a essas peles a menor importância, porém os do interior procuram aprimorá-las, pois não encontram no comércio meio de adquirir outros vestidos.

Escolhem os animais e, tirando-lhes a pele, adornam-na de manchas e a entretecem com a de outros bichos produzidos pelo oceano mais setentrional [24] e por um mar que nos é desconhecido [25]. As mulheres não trajam de maneira diversa dos homens: usam elas, comumente, roupas de linho, listradas de púrpura e não alongam a parte superior do vestido em forma de mangas, contudo deixam nus ombros e braços. A parte superior do peito também fica desnudada.

XVIII
O matrimônio é, entre eles, severamente acatado e não há nos seus costumes coisa que mereça mais louvor. São os germanos quase os únicos bárbaros que se contentam com uma só mulher, exceto alguns maiorais, que tomam para si várias esposas, e, isso não por devassidão, mas por alardear nobreza. A mulher não oferece dote ao marido, porém o marido à mulher.

O pai, a mãe e os parentes intervêm e controlam os presentes de noivado. Estes presentes não são escolhidos de molde a encantar os olhos de uma mulher, nem para enfeitar noiva: juntas de bois, cavalos ajaezados, escudos com frâmea e espada. E entregues os presentes, o noivo recebe a mulher que, por seu turno, oferece as armas ao marido. Eis o vínculo solene, a cerimônia misteriosa — os deuses conjugais. Afim de que a mulher não se julgue desobrigada de pensamentos virtuosos nem alheia aos negócios da guerra é advertida, logo ao início do rito nupcial, de que deve partilhar com o marido dos trabalhos e dos perigos que ele enfrentar e lhe deve solidariedade perfeita nos sofrimentos e nas façanhas que alcançar, tanto na paz como nos campos de batalha. Nem outra coisa simbolizam os bois ungidos o cavalo aparelhado e as armas que lhe deram: assim deve viver e assim deve morrer. E o que recebe, cumpre-lhe transmitir, sem mácula, aos filhos que vierem. E é digno também que o recebam as noras para que de novo possam transmitir aos netos.

XIX
Desta sorte, a virgindade das mulheres está garantida contra os atrativos corruptores dos espetáculos e as excitações dos festins. Homens e mulheres ignoram a correspondência secreta. Os adultérios são raríssimos entre povo tão numeroso e quando os há a punição não se faz esperar e cabe ao marido ministrá-la. Depois de cortar-lhe os cabelos e desnudá-la na presença de parentes, o marido a expulsa de casa e, a golpes de açoite, condú-la através da aldeia em que habitam, pois diante de tal desonra não pode haver misericórdia.

Não obstante a mocidade, a formosura e os cabedais de que fosse senhora e dona, uma adúltera não encontraria nunca mais quem a recebesse como esposa. Aí ninguém faz ostentação de vício, nem considera moda o corromper ou ser corrompido. Mais escrúpulos se encontram ainda em mulheres das cidades, onde só as donzelas casam e onde se condescende, pela última vez, as esperanças e ao voto da mulher. Unem-se, assim, ao marido como para formar com ele um só corpo, uma só vida. Seus desejos e pensamentos não podem ir além do seu marido e não é ao marido que elas ama, mas ao casamento tão somente. Limitar-se o número de filhos ou por termo à vida dos já nascidos é crime gravíssimo e, entre eles, pode mais a tradição do que as leis em qualquer outra parte do mundo.

XX
Criados, geralmente, na nudez e na sordidez, crescem até atingir a compleição e vigor que lhes admiramos. As mães não entregam os filhos as servas ou as damas: elas próprias os amamentam. O senhor e o escravo não se diferenciam por nenhum refinamento educacional: vivem por entre os mesmos rebanhos, dorme sobre o mesmo chão, até que a idade separe os homens livres e o seu valor obrigue a reconhecê-los como tais. A mocidade conhece tardiamente a Vênus, o que concorre para lhes assegurar seiva e saúde inesgotáveis. Não há pressa em efetuar o casamento das donzelas: ambos os sexos, igualmente jovens e igualmente desenvolvidos, se unem, robustos e sadios e, assim, os descendentes destes casais podem reproduzir, magnificamente, a virilidade dos pais.

Os filhos de uma irmã gozam tanta a afeição dos tios como dos próprios pais. Pensam alguns que este parentesco é mais estreito e inviolável e quando se trata de reféns, preferem antes ao sobrinhos por se tratar de entes mais queridos da família. Contudo, os filhos são sempre os herdeiros sucessores e por isso nem se torna necessário o testamento. Se não há filhos herda o grau imediato, os irmãos, os tios paternos, os maternos. Quanto maior é o número de parentes tanto mais avultado o dos afins. Deste modo, tanto mais acatada é a velhice. Considera-se desdouro o não ter filhos.

XXI
Tem-se como dever aceitar, em herança, os ódios e as malquerenças quer do pai, quer dos parentes. Os ódios, porém, não são implacáveis. Porque os agravos e até mesmo o homicídio se resgatam com certo número de cabeças de gado e toda a família aceita esta satisfação, pois tal ato é considerado como serviço prestado à República: os ódios são perigosíssimos para homens que vivem em liberdade.

XXII
Não há nação mais antiga de festins nem de dar agasalho aos que a procuram. Fechar a porta a um peregrino é tremendo crime. Cada qual, de acordo com suas posses, acolhe sob o seu teto e a sua mesa. Si, porém, lhe falece toda e qualquer ajuda, deve então enviar o hóspede à casa do vizinho, onde, se bem não hajam sido convidados — o que não vai ao caso — são acolhidos com a mesma humanidade sem que se estabeleça diferença, quanto ao acolhimento, entre o conhecido e o ádvena. É costume ao hóspede de partida se lhe dar o que haja pedido, mas aos de casa que lhe deram guarida concede-se também a mesma faculdade. Estimam os presentes, mas não encarecem os que dão nem agradecem os que recebem.

XXIII
Assim que despertam, pois de ordinário se levantam já com alto sol, lavam-se às mais das vezes em água quente, como se vivessem em permanente inverno. Após a ablução, comem: cada qual à parte, em mesa separada. Para tratar de negócios, ou quase sempre para o prazer dos banquetes, vão armados. Passar o dia e a noite em beberagens não se considera ato vexatório. As rixas, inevitáveis entre eles e poucas vezes ficam no terreno das injúrias: terminam comumente em ferimentos ou morte.

Contudo, procuram os banquetes como bela ocasião para reconciliar inimigos, contratar casamentos, escolher generais ou ventilar negócios concernentes à paz ou à guerra. Pensam eles que não há momento tão propício, como este, para se abrir mais facilmente a franqueza nem experimentar mais ardor das grandes idéias. Homens sem astúcia nem agilidade de espírito, aproveitam ainda o abandono e o júbilo dos divertimentos para auscultar o fundo do próprio coração. Desta maneira ficam descobertos e completamente nus o pensamento e a intenção de cada qual. No dia seguinte voltam a debater as mesmas questões e salva-se o que pertence aos dois opostos ensejos: deliberam, quando não sabem fingir e resolvem, quando não podem errar.

XXIV
Como bebida fabricam um licor de cevada e trigo fermentado à semelhança do vinho. Os habitantes próximos do Reno também compram esta bebida. A alimentação é simples: frutos silvestres, caça recém abatida e leite coalhado. Saciam a fome sem temperos nem especiarias. Em relação à sede, porém, não há tal temperança. Se se lhes desse a beber quando desejassem, não seria menos fácil convencê-los com a embriaguez do que com as armas.

XXV
Possuem apenas um gênero de espetáculo e o repetem em todas as reuniões. Rapazes nus que se exercitam neste jogo, saltam e dançam por entre as pontas das espadas e das frâmeas contrapostas. O exercício lhes ensinou a arte e a arte deu-lhes garbo e elegância. Não o praticam, entretanto, por ganância ou visando lucro de qualquer espécie, porque a recompensa da sua audaz temeridade é o entusiasmo com que se manifestam os espectadores. Os jogos dos dados — fato espantoso! — assumem para eles, quando não embriagados, uma ocupação séria e os jogam tão apaixonadamente que, à falta de tudo o mais, jogam, em último lanço, o corpo e a liberdade. O vencido sujeita-se espontaneamente à escravidão e, embora mais moço e mais robusto, consentem que o manietem e o vendam: tal é a sua obstinação no vício. E a isto chamam fidelidade! [26] Os servos assim havidos são postos à venda afim de se livrarem também os vendedores da vergonha que lhes acarreta tal vitória.

XXVI
Quanto aos demais escravos [27], não os empregam, como nós, nos vários misteres domésticos. Cada qual tem habitação própria, seus próprios penates e se governa a si mesmo. Recebe certa quantidade de gêneros, de gado e de roupas, como um colono, e nisto se cifra a sua servidão. Os misteres da família são preenchidos pela mulher e pelos filhos. Açoitar um servo, ou metê-lo em ferros, ou forçá-lo ao trabalho é raro. Costumam matá-los, não por castigo ou por severidade, mas quando arrebatados pela cólera ou assassinam como si se tratasse de um inimigo pessoal, com a diferença, porém, de que o crime praticado contra o escravo não recebe punição.

Os libertos não levam muito mais vantagem do que os escravos: uma ou outra vez conseguem gozar de valia no meio dos senhores. Nas cidades, porém, não lhes assiste nenhuma regalia, salvo naquelas nações governadas por monarcas. Aqui podem mais do que os homens livres e do os próprios nobres. Em todos os outros recantos, a desigualdade dos libertos serve apenas para argumento de liberdade.

XXVII
A prática dos empréstimos, de lucro e de usura é desconhecida entre os germanos, o que lhes aproveita melhor do que qualquer medida coibitiva. As terras cultiváveis são repartidas proporcionalmente ao número dos que as cultivam e, depois, divididas segundo a categoria social dos agricultores, partilha esta evidentemente fácil, pois há vastos tratos de campos que jamais foram plantados. A cada ano mudam de herdade e sempre lhes sobra espaço: porque não procuram aumentar a fertilidade e a quantidade do solo com trabalho e indústria, isto é, plantando árvores, cercando prados e regando as hortas [28]. Contentam-se apenas com que a terra lhes dê grãos e, deste modo, não dividem o ano tal qual nós outros. Conhecem o inverno, a primavera e o verão e sabem-lhes os nomes. Ignoram, porém, o outono e os bens que nos proporciona esta estação.

XXVIII
Seus funerais são simples. Queimam os corpos de seus homens ilustres com uma lenha especial. Não arrojam à fogueira roupas ou perfumes, mas as armas do defunto, e, em alguns casos, seu cavalo. Constroem os sepulcros com céspedes, desprezando o luxo dispendioso de um mausoléu. Logo dão fim a seus lamentos e lágrimas, mas a dor e a tristeza permanecem durante muito tempo. É próprio e conveniente para as mulheres chorar e para os homens recordar. Isso é tudo o que sei da origem e dos costumes dos germanos. Agora darei a conhecer as instituições e maneiras pecualiares de cada povo, além das emigrações daqueles que da Germânia passaram à Gália.

XXIX
O divino Júlio [29], escritor dos mais autorizados, refere que antigamente a superioridade dos galos foi maior e, por isso, é crível hajam eles passado também à Germânia. Que poderoso obstáculo poderia constituir um curso de água [30] à vontade de uma nação dominante que tenha em mira se apossar, nas suas investidas, de regiões abertas a toda gente e ainda não governadas nem defendidas por um soberano que as partilhasse?

Assim, as terras jacentes entre a floresta Hercínia e os rios Reno e Meno foram ocupadas pelos helvécios; e pelos boios [31] as quais demoram no interior, sendo gaulesas ambas estas nações. Perdura ainda na memória das gentes o vocábulo “boiemo”, nome que recorda aquele antigo país, se bem sejam outros, já, os seus habitantes. Não há certeza, porém, se os araviscos emigraram para a Panônia por causa dos osos, nação germânica, ou se os osos para a Germânia por causa dos araviscos, pois ambos estes povos falam a mesma língua e adotam os mesmos usos e costumes, tanto mais que outrora, igualmente pobres e igualmente livres, encontravam numa ou noutra margem (do Danúbio) as mesmas vantagens e as mesmas desvantagens.

Os treviros e os nérvios [32] se jactam da sua origem germânica e a proclamam como se quisessem, pela glória desta ascendência, livrar-se da pecha de covardes que enegrece a reputação dos galos. Os vangiões, os tribocos e os nemetes, habitantes da margem do Reno, são sem dúvida de estirpe germânica. Os úbios, embora também merecido as honras de colônia romana, preferem o apelido de agripinenses, do nome da sua fundadora [33] e não se envergonham da sua progênie. Como atravessassem, desde tempos remotos, o curso do Reno, em virtude pelas muitas provas que deram da sua lealdade (aos romanos) foram colocados naquelas margens, não para serem vigiados, mas para conhecerem os inimigos.

XXX
De todos estes povos os batavos são os mais valentes. Não dispõem de muitas terras à margem do Reno, mas ocupam uma de suas ilhas [34]. Da tribo dos catos, antigamente, passaram, em vista de dissenções domésticas, àquelas terras afim de se tornar integrante do Império Romano. Subsiste ainda a palavra e o testemunho da velha aliança [35] e amizade porque, como não os oprimimos com pesados tributos, não são maltratados pelos fiscais de consumo. Isentos, como estão, de taxas e impostos extraordinários e destinados exclusivamente para os combates, conservá-mô-los da mesma maneira pela qual se conservam os arsenais para a guerra. [36]

Colocamos a nação dos matiacos no mesmo pé de igualdade [37]. O fato é que o esplendor da fama romana ultrapassou o Reno e chegou ao extremo das fronteiras conhecidas. Germânicos não obstante pelo território que ocupam, os matiacos se manifestam romanos pelo sentimento e pelo coração. No demais se assemelham aos batavos: senão pelo clima e pelo solo pelo menos pela ousadia. Não incluirei entre os povos da Germânia, se bem se houvessem estabelecido além do Reno e do Danúbio, os que cultivam os campos “decimados” (decumates agros) [38]. Os mais inconstantes e aventurosos dos gauleses, impelidos pela miséria, foram os primeiros a ocupar aquelas terras de proprietários desconhecidos. Agora que os nossos limites avançaram e levamos mais para longe os nossos pólos militares (praesidiis), este país constitue um prolongamento de Império, isto é, parte de uma província.

XXXI
Mais para além residem os catos [39], cujo país começa na floresta Hercínia e cujas terras são menos planas e menos pantanosas do que as das demais comarcas da Germânia. Colinas que a pouco e pouco se esvanecem, cortam-na de lado a lado. A floresta Hercínia [40] acompanha sempre o território dos catos e com ele acaba também. É, esta, uma gente robusta, de vigorosa compleição, membros reforçados, aspecto feroz e ânimo viril. São (para os germanos) habilidosos e sagacíssimos. Sabem escolher os chefes, obedecer aos que mandam, apreciar a hierarquia, escolher as oportunidades, reprimir o entusiasmo, aproveitar o dia, construir fortificações durante a noite, contar com a sorte duvidosa (fortunam inter dubia) e em meio às incertezas, saber onde reside o valor.

E, o que é raríssimo e não pode ser senão fruto de disciplina é o fato de se ter mais confiança no capitão do que em todo o exército. Toda a sua força reside na infantaria que, além das armas, carrega também víveres e instrumentos de ferro destinados a obras militares. Os outros povos marcham apenas para a batalha: os catos, para a guerra. Não gostam de correrias e evitam as escaramuças. A cavalaria ataca e vence de inopino e também de inopino se retira. A precipitação é companheira do temor; a lentidão, da firmeza.

XXXII
O que entre as nações germânicas é considerado excepcional e somente o realiza algum indivíduo mais afoito, entre os catos já é questão pacífica e todos o adotam por consenso unânime, como por exemplo: o crescimento do cabelo e da barba nos adolescentes e, por motivo de um voto feito ao Valor [41] não podem cortá-los senão depois de terem abatido um inimigo. É sobre o sangue e os despojos do adversário morto que eles descobrem a cabeça e, só assim, julgam resgatada a dívida do nascimento e dignos de seus pais e da sua pátria. Os fracos e os poltrões, medrosos da guerra, conservam este sinal de humilhação. [42]

Os mais destemidos carregam um anel de ferro (o que representa ignomínia aos olhos deste povo) à maneira de grilhão até que mediante a morte de um inimigo possam considerar-se libertados. Os catos em geral adotam esta moda e com este distintivo chegam à senectude, considerado pelos conterrâneos e respeitados pelos adversários. São estes, sempre os que dão início às batalhas e que marcham à vanguarda, cujo espetáculo pavoroso é digno de nota: nem mesmo em tempo de paz lhes desaparece o aspecto horroroso nem se apresentam mais tratáveis. Nenhum deles possui habitação, terras ou quaisquer outros bens que lhes monopolizem os cuidados. Aonde chegam aí se nutrem e se agasalham. Revelam-se prodígios com as posses alheias e menos prezadores do que lhes pertence. Assim atingem a velhice e com ela se reduzem a um estado de não mais poder sustentar tão áspera e rigorosa norma de viver (tam durae virtuti).

XXXIII
Cerca dos catos, onde o Reno já corre caudalosamente e pode servir de limite, habitam os usipios e os tenecteros [43]. Além do seu reconhecido valor militar, os tenecteros gozam de renome de exímio cavaleiros, arma esta que não é menos estimada do que a infantaria dos catos. Instruíram-nos os seus antepassados e os descendentes os imitam. A equitação constitui um dos brinquedos prediletos das crianças, um motivo de competição para os moços e de perseverança para os velhos. No tocante aos bens, compreendido o matrimônio, os cavalos são herdados e se destinam não como outros bens ao primogênito, mas ao que se mostrou mais atrevido na guerra.

XXXIV
Junto dos tenecteros demoravam outrora os bructeros [44]. Assevera-se agora que os chamavos e os agrivários tomaram-lhes o lugar, tendo, de comum acordo com as nações vizinhas, expulsado e destruído os bructeros ou por odiar-lhes o orgulho ou por cobiçar-lhes a riqueza dos bens, ou levados, talvez, por algum favor particular que nos quiseram conceder os deuses. Pois sua bondade nos permitiu contemplar esta peleja: para mais de sessenta mil homens tombaram no campo da refrega, não por motivo da intervenção das armas romanas, mas — para alegria e deleite dos nossos olhos.

Praza aos deuses que, se não obtivermos a amizade daquelas gentes, duradouro seja o ódio recíproco! Pois em face do declínio dos fados do Império nenhum melhor dom nos pôde outorgar a fortuna do que a discórdia entre inimigos.

XXXV
Os agrivários e os chamavos limitam pelo lado oposto com os dulbiginos e os casuários [45], e com outros povos menos conhecidos: os frísios [46] ficam-lhes à frente. Os frísios dividem-se em “maiores” e “menores”, segundo o poder de que dispõem: ambas estas nações se estendem ao longo do Reno até ao Oceano, orlando, além disso, grandes lagos já cortados pelas quilhas das armadas romanas [47]. Outrora tentamos também por aquela rota a exploração do oceano e a fama espalhou por toda parte a existência, ali, das colunas de Hércules [48] ou porque o herói chegasse até aquele ponto ou porque estejamos de acordo em ligar o nome do herói a tudo quanto pareça maravilhoso. Não faltou arrojo a Druso Germânico na investigação daqueles mares: foi o oceano que se opôs à inquirição dos segredos de Hércules. Dai por diante ninguém mais tentou tamanha empresa: houve mais acatamento e reverência no que diz respeito aos deuses — a quem se deve mais crer do que examinar.

XXXVI
Até aqui estudamos a Germânia Ocidental. Para o norte forma uma grande curva. Desde logo topa-se com os chaucos [49], nação que, embora confine com os frisos e possua parte do litoral, vai marginando todas as nações de que falei até lindar com os catos. Os chaucos fazem mais do que ocupar vastíssimas áreas territoriais: povoam-nas. Esta nação é considerada nobilíssima entre os germanos e preferem manter a grandeza mais pela justiça do que pela força.

Vivem quietos e retirados, sem excessiva ambição, amando a existência pacífica, sem se entregar ao roubo e as correrias. O maior argumento de que se valem para pôr evidência as virtudes do que os exornam é o de que a sua superioridade não foi erigida à custa da desgraça alheia. Contudo, as armas não lhes ficam longe das mãos e, em caso necessário, podem equipar um exército porque não lhes minguam nem homens nem cavalos. Na paz gozam o mesmo prestígio.

XXXVII
Ao lado dos chaucos e dos catos, jamais atacados por quem quer que fosse, florescem os cheruscos [50], em longa e nociva paz, que lhes proporcionam mais prazer do que segurança, pois em face de vizinhos tão poderosos quanto insolentes, a calma não tem razão de ser e, uma vez em guerra, o título de moderado e de probo pertence ao vencedor.

Assim, os cheruscos, outrora considerados “bons” e “justos” são tido presentemente na conta de “néscios” e “inofensivos”. Em compensação, para os catos vitoriosos o fator “sorte” se converteu em “sabedoria”. A ruína dos cheruscos arrastou consigo os fosios [51], nação limítrofe, que lhes irmanou na desventura, sem, entretanto, haver partilhado da prosperidade.

XXXVIII
Na mesma região norte da Germânia, nas proximidades do Oceano, se encontram os cimbros [52], atual pequeno povo, mas de excepcional esplendor passado. Encontramos ainda profundos sulcos do seu antigo poderio: numa e noutra margem do Reno vêem-se as ruínas de amplos acampamentos pelas quais se pode avaliar da capacidade, dos recursos e da pujança desta nação e fazer-se uma idéia do que era o seu prodigioso exército. Corria o ano de seiscentos e quarenta da fundação de Roma, quando pela primeira vez se aludiu a guerra dos cimbros, sendo cônsules Cecílio Metelo e Papirio Cardo.

Se contarmos desde então até o segundo consulado do imperador Trajano [53] teremos duzentos e dez anos — tanto é o tempo que levamos para conquistar a Germânia! Em tão longo período, pesadas têm sido as perdas de lado a lado. Nem os samnitas, nem os cartagineses, nem os espanhóis, nem os galos e nem mesmos os partos nos ministraram mais duras lições. É que a liberdade dos germanos geram mais energias do que a monarquia dos arsácidas [54]. Se excetuarmos, pois, a morte de Cássio, que, porventura, nos poderá lançar em rosto o Oriente, que por sua vez perdeu Pacoro [55], um dos seus soberanos e se viu, ao fim, humilhado por Ventídio [56], soldado de Roma?

Ao contrário, os germanos, prendendo ou desbaratando Carbo, Cássio, Scauro Aurélio, Servílio, Cipião e Mânlio, destruíram cinco exércitos consulares ao povo romano e arrebataram a César Augusto e a Varo três legiões completas. Não foi também que sem dano C. Mário os derrotou na Itália; o divino Júlio, nas Gálias; e Druso, Nero e Germânico dentro dos seus próprios domínios. Depois disto, as terríveis ameaças de Caio César se transformaram em ludíbrio [57]. A seguir, veio a paz até que, aproveitando-se das nossas discórdias e da guerra civil, assaltaram os quartéis de inverno de algumas das nossas legiões e se atiraram contra as Gálias, de onde foram expulsos novamente. Em suma, nestes últimos tempos tem sido triunfar sobre eles do que vencê-los. [58]

XXXIX
Os suevos [59] que não formam, como os catos ou tenecteros, uma única nação, mas ocupam a maior parte da Germânia, dividindo-se ainda hoje em povos com diferentes cognomes, muito designados genericamente por suevos. Uma das peculiaridades desta gente consiste em trançar o cabelo e atá-lo com um nó. Por este uso os suevos se distinguem dos germanos e entre eles, os homens livres dos escravos. Nas demais nações este uso não é trivial, a não ser naquelas que ou são aparentados com os suevos ou (como acontece) querem simplesmente imitá-los. Esta moda não vai, porém, além da mocidade.

Entretanto, os suevos conservam até a velhice a crespa guedelha atada para trás e muitas vezes arrematada no alto da cabeça. Os chefes são mais requintados neste particular. Este desavelo, sem embargo, de ataviar-se é neles inocente: não os movem vaidades afeminadas. Arrumam o cabelo, ao entrar em combate, em tufos gigantescos, menos por enfeite do que para atemorizar o olhar do inimigo.

XL
Os semones [60] se dizem os mais antigos e os mais nobres dos suevos, e confirmam isso com sua religião. Em certas épocas do ano, numa de suas florestas, consagrados pelos áugures dos seus pais e por prístinos terrores — “auguriis patrum et, priscà formidine sacram” [61] — congregam-se os povos dessa mesma origem e, sacrificando publicamente um homem, celebram a horrível instituição de um bárbaro rito. Praticam, do mesmo modo, outra superstição em honra desse bosque sagrado: ninguém penetra ali senão algemado como símbolo de sua própria fraqueza e afirmação do poder da divindade. Se por acaso o iniciado tropeça e cai, não tem direito de se levantar e prosseguir: rola por terra. Todas essas superstições têm por objetivo mostrar que ali está o berço da nação e que ali mora o deus dominador de tudo, a quem todos os demais se sujeitam e obedecem. A fortuna dos semones lhes dá essa autoridade: eles habitam cem aldeias e esse grande conjunto tem os suevos como cabeça.

XLI
Os longobardos [62] se orgulham de seu pequeno número. Cercado de numerosos e belicosíssimos povos, encontram segurança não pela magnanimidade dos demais ou por submissão própria, mas por meio de combates em que arrostam perigos. Os reudignos [63] que vêem em seguida, os aviões, os anglos, os varinos, os eudosos, os suardões, os nuitões, todos estão separados e defendidos por florestas e rios. Não há nada a notar neles a não ser o fato de que todos adoram a deusa Hertho [64], isto é, a Mãe-Terra, cuja interferência nos negócios humanos eles acreditam, como acreditam também na visita que ela faz a todos os povos.

Em uma ilha do oceano [65] há um bosque chamado “casto”, dentro do qual existe um coche coberto com um véu dedicado à deusa e que só pode ser tocado pelas mãos de um sacerdote. Este sabe quando a deusa está no santuário e reverentemente acompanha o veículo tirado por uma junta de novilhos. Então há dias de alegria e de festa nos lugares em que a divindade se digna a visitar. São estes os únicos momentos que não consagram à guerra [66]: eles guardam as armas até o instante em que o sacerdote retorna com a deusa, ao templo, farta e cansada da companhia dos mortais. Sem demora, as roupas sagradas, o carro, o véu e, se é lícito acreditar, até a própria deusa, tudo se purifica nas águas de um lago secreto. Os escravos ocupados neste ofício são afogados na própria linfa sagrada. Daí o misterioso terror, a santa ignorância do que possa ser aquilo que só vêm os destinados a perecer.

XLII
Esta parte dos suevos se estende até o coração da Germânia. Mais próximo (para seguir agora o Danúbio como há pouco segui o Reno) se encontra a cidade dos hermonduros [67], gente fiel aos romanos e por isso, excepcionalmente, permitimos que eles comerciem, não apenas nas margens do rio, como os outros germanos, mas até ao interior da região e até mesmo a colônia mais florescente da nossa província da Récia. [68] Andam por onde lhes apraz sem vigilância. [69] Enquanto não permitimos as outras nações ver mais do que as nossas forças armadas e os nossos acampamentos militares, abrimos este povo as portas de nossas casas, das nossas verdades, pois não as cobiçam. No país dos hermonduros nasce o Albis, famoso rio outrora conhecidíssimo pelos romanos, hoje apenas vagamente citado. [70]

XLIII
Ao lado dos hermonduros vivem os nariscos e, mais adiante, os marcomanos e os quados [71]. Os marcomanos superam todos os outros pela força e pelo prestígio. O próprio país em que se instalaram, depois de expulsados os boios, representa uma conquista devida ao seu valor intrínseco. Os nariscos e os quados não lhes cedem passo. Esta é como a fronteira da Germânia, na parte banhada pelo Danúbio. Os marcomanos e os quados conservaram até o nosso tempo reis naturais da sua própria raça, da ilustre casa de Maroboduo e de Tudro [72]. Hoje são governados até por estrangeiros. A força e o poder destes reis, entretanto, provêm da autoridade e da proteção de Roma [73]. Escassamente os ajudamos com nossas armas: com o nosso dinheiro muitas vezes. Contudo, nem por isso são menos poderosos.

XLIV
Mais além, os marsignos, os gotunos, os osos e os búrios [74] formam na retaguarda dos marcomanos e dos quados. Vê-se pelo trajo e pela língua que os marsignos e os búrios descendem dos suevos. O gálico falado pelos gatunos e o panônico pelos osos e, sobretudo, a resignação com que aceitam o peso dos tributos, provam que este povo nada apresenta de comum com os germanos. Parte destes tributos lhes é imposta pelos sármatos [75] e parte pelos quados, que os tratam como estrangeiros.

Os gotunos, para cúmulo da humilhação, trabalham nas minas de ferro. [76] Estas tribos habitam mais o seio das florestas e o dorso das serranias do que as planícies. Saiba-se, pois, que a região dos suevos é separada e cortada por uma cadeia contínua de montanhas, além das quais habitam vários povos de que os lígios [77], ocupando numerosas cidades, representam a porção mais considerável. Basta citar os principais: os ários, os helveções, os manimos, os elísios e os naharvalos. [78]

No país dos naharvalos existe um bosque consagrado por antigo culto. As cerimônias são presididas por um sacerdote vestido de mulher. Acreditam os romanos que ali se adoram os deuses Castor e Pólux, sob a invocação dos Alcis. Neste sítio não se vêem imagens nem vestígios de superstição estrangeira. Veneram somente dois irmãos jovens. Entretanto, os ários não são apenas superiores em força aos demais povos citados: são também cruéis e exageram a natural ferocidade ajudados pelo artifício e pelo tempo: usam escudos negros, pintam o corpo [79] e preferem para os combates as noites mais escuras. O espanto e o assombro causado por este lúgubre exército bastam para intimidar o inimigo que, em absoluto, consegue suportar este infernal espetáculo, porquanto as primeiras vítimas ao encetar-se a peleja, são logo os olhos.

XLV
Como os lígios, os gotunos são governados por monarcas e, embora se sintam um pouco mais sujeitos do que os outros povos germânicos, não perderam de todo a liberdade. Na costa do oceano habitam os rúgios e os lemóvios [80]: todas estas gens se distinguem pelos escudos redondos e pelas espadas curtas que ostentam, bem como pela obediência que prestam aos reis. Seguem-se-lhes, imediatamente, ao longo do mesmo oceano, as cidades dos suiões, poderosíssimos não só em exércitos mas também em esquadras. [81]

A configuração dos seus navios difere em que, armados de duas proas, podem sempre abordar de frente. Não navegam com velas nem dispõem os remos por ordem, na borda das embarcações: usam-nos soltos, como freqüentemente se adotam nos rios, e, de acordo com as circunstâncias, mudam de um para outro lado. As riquezas materiais são apreciadíssimas, razão por que se submetem a um chefe que, sem restrição alguma, exerce uma autoridade e um direito que nada tem de precários.

As armas, aqui não estão como entre os demais germânicos, à disposição de qualquer pessoa: mas guardadas sob a responsabilidade de um escravo, pois o oceano os coloca ao abrigo de qualquer surpresa. Na verdade, as armas nas mãos de uma tropa inativa geram quase sempre tumulto e desordem. Não convém, demais, a um soberano entregar a custódia dos arsenais a um nobre, a um homem livre ou a mesmo a um liberto.

XLVI
Para lá dos suiões encontra-se outro mar tranquilo, quase imóvel [82], que, segundo se acredita, forma a cintura e o limite do mundo, porque nela a última claridade do crepúsculo se prolonga até a aurora, tão lúcida que amortece o brilho das estrelas. A credulidade acrescenta que se ouve o estrondo quando o Sol sai e que se vê os raios de sua cabeça e figuras de deuses. Ali é certo que acaba a Natureza. [83]

À direita do mar suevo se estende pela costa o povo dos éstios, [84] que, por seu costume e vestimentas assemelha-se muito aos suevos, e por sua língua aos bretões. Veneram a mãe dos deuses, e têm figuras de javalis como sinal de sua religião, [85] que levam em lugar das armas para sua defesa e se apresentam no meio de seus inimigos confiantes na devoção à sua deusa. Usam pouco o ferro e muito os cajados. Cultivam o trigo e outras espécies de grãos com muito mais cuidado e paciência do que é comum entre os germanos. São os únicos que buscam o âmbar - que chamam de gleso - [86] nas praias e no fundo do mar. Como bárbaros que são, não se preocupam em averiguar qual é sua natureza e como se forma. Durante muito tempo ele se encontrava em jazidas costeiras como outros restos do mar, até que nosso luxo o tornou precioso. Eles não o utilizavam, colhendo-o a esmo e transportando-o sem refinar. Por fim, assombrados, perceberam sua importância.

Calculo que se trata do humor de alguns arbustos, [87] porque transparece no âmbar, amiúde, animáculos e até insetos [88] que, tendo aderido ao licor, ficaram presos ali ao se transformar em massa consistente. Sou propenso a crer que, como em certas partes remotas do Oriente dão o incenso e o bálsamo, também nas ilhas eternas do Oriente existem árvores de selvas e bosques fertilíssimos, cujos licores secados pelos raios do sol vizinho venham a cair no mar que as banham e de onde a violência das tempestades os arroje a outras praias contrapostas. Se, para lhe conhecermos a natureza íntima, aproximarmos o âmbar do fogo, vê-lo-emos inflamar-se como um archote e produzir uma chama grossa e cheirosa em seguida, transforma-se em gelatina, como o pêz ou a resina. A nação dos sitões [89] se prolonga até aos suiões. Em tudo se assemelham eles aos demais povos, exceto nisto: são dirigidos pelas mulheres. Assim, não só degeneraram em relação à liberdade, mas também em relação à própria escravidão. Aqui acaba a Suévia.

XLVII
Tenho dúvidas se devo incluir entre as nações germânicas ou se entre as sármatas, as tribos dos peucinos, dos venedos e dos fenos, [90] se bem que os peucinos, também chamados bastarnas por alguns, sejam na linguagem, no trato e no modo de habitar quase idênticos aos germânicos. Em todos, porém, a sordidez e a preguiça representam o denominador comum (sordes omnium ac torpor). No respeitante aos chefes a mistura de sangue com os sármatas, pelos casamentos realizados, deu-lhes um pouco da fisionomia selvagem e da maneira de vida desta tribo.

Os venedos herdaram muito dos seus costumes, pois as florestas e os montes que se erguem entre os teucinos e os fenos, os venedos trilham e pilham se cessar. Contudo, costumam estes ser reconhecidos como germanos; sabem edificar, fabricam escudos, andam a pé e são agilíssimos. Em tudo isto diferem dos sármatas, que se locomovem de carro e a cavalo. É espantoso o grau de barbárie e o estado de miséria dos fenos: não possuem armas, nem cavalos, nem moradas. Alimentam-se de ervas, vestem-se de peles e dormem na terra nua. Todos os seus recursos residem nas frechas que, na falta de ferro são armadas de ossos pontiagudos. A caça sustenta homens e mulheres. Como estas não abandonam os maridos este mister venatório, exigem parte da presa.

As crianças não conhecem outra espécie de abrigo contra as feras e as tempestades além da choca feita de galhos entrelaçados. Servem elas também de refúgio para os moços e de asilo para os velhos. Encontram neste estilo de existência mais felicidade do que poderiam encontrar no amanho da terra, na laboriosa construção de casas ou em colocar entre esperanças e ameaças, o destino e os bens da sua ou das demais nações. Seguros da parte dos homens e seguro da parte dos deuses, alcançaram esta coisa dificílima: não sentir sequer a necessidade de desejar. Tudo o mais que se conta a respeito deste mundo é fabuloso, como por exemplo: que os helúrios e os oxionas apresentam feições e rosto de homem e corpo e membro de feras. [91] Como isto, porém, não está averiguado, ponho de lado o assunto.

*

Notas

[1] Germânia (trad. e notas de Sadi Garibaldi). Rio de Janeiro: Editora Livraria Para Todos, 1943. Essa tradução foi confrontada com CAYO CORNELIO TÁCITO. Obras completas (traducción, introducción y notas. Obra publicada bajo la dirección de VICENTE BLANCO Y GARCÍA). Madrid: M. Aguilar Editor, 1946, p. 1011-1044.

Tácito, nascido provavelmente na Gália Narbonense em 56/57 d. C, escreveu esta obra em 98 d. C. Era considerado um dos oradores mais importantes de Roma em seu tempo. Germania é uma monografia histórica e etnográfica onde o autor percebe a ameaça dos germanos pela sua forte noção de libertas (liberdade, inexistente em Roma), bem como pela coragem (virtus).

[2] Os antigos compreendiam, sob o nome da Germânia, não apenas o país que forma hoje a Alemanha, mas ainda a Dinamarca, a Suécia, a Noruega, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Finlândia, etc. A Récia ocupava o país dos Grisões com uma parte da Suábia e da Baviera.

[3] “Golfos espaçosos”: o golfo da Riga, da Finlândia, de Botnia. “Vastas ilhas”: a Suécia, que os antigos acreditavam fosse uma ilha e as ilhas da Dinamarca. Os Alpes Récios são hoje as montanhas dos Grisões, o monte Abnoba e a Floresta Negra.

[4] Atual Mar Negro.

[5] Os antigos estavam persuadidos de que o globo terrestre elevava-se para o norte e que, assim, para navegar pelo Oceano Setentrional tornava-se necessário remontar o curso d’água.

[6] Os ingevões eram povos germânicos estabelecidos nas costas do Mar do Norte, desde o país dos batavos até a Península dinamarquesa. Herminões é o nome genérico dado aos povos habitantes do interior das terras, e particularmente, da Alemanha central. Enfim, sob o nome dos istevões designam-se os povos estabelecidos na Renânia. Estes três nomes se ligam aos três filhos de Mann: Itgo, Ermn e Isto, que não são outros senão os sobrenomes dos três deuses Freyr, Tin e Wodan.

[7] Terror que causavam aos galos.

[8] Wehr — menn ou Germann, que eles pronunciavam. GUERRE — MAIN, e significa “homem de guerra”.

[9] Denominação greco-romana dos deuses THOR ou DONAR, que desencadeava a tempestade e brandia um martelo de pedra, da mesma forma que o deus grego empunhava a maça.

[10] Os romanos, como se depreende das Historias de Tácito, também tinham os seus bardito.

[11] Asciburgio = atual cidade de Asburgo.

[12] Nóvica = Baviera e Áustria.

[13] Panônia = atual Hungria.

[14] De pequenos cornos.

[15] Serrat nummi: vinheiro de prata, cuja borda era dentada, à maneira de serra; Bigatus nummces: denário de prata com a efígie de uma Vitória num carro puxado por uma biga.

[16] O capacete de metal (cassis) era o da cavalaria romana e o de couro (galea), da infantaria.

[17] Vespasiano (9-79 d.C.), imperador (69-79 d.C.).

[18] Nave libúrnia (do latim liburna) - A nave libúrnia era uma embarcação utilizada pelos romanos no início da era cristã para o transporte de trigo do Egito para Roma.

[19] A palavra sorte designava os objetos usados para decidir alguma coisa por meio da adivinhação.

[20] Chefes da aristocracia germânica, revestidos de autoridade judicial, religiosa e militar.

[21] Encontra-se aqui a origem da tradição da antiga cavalaria medieval de cingir a espada ao que se arma de cavaleiro.

[22] A toga que os romanos envergavam a partir dos dezessete anos.

[23] Os jovens aristocratas, companheiros de um príncipe.

[24] O Mar Ártico.

[25] Isto é, a parte mais oriental do Mar Báltico.

[26] Provavelmente é daí que provém a expressão “escravo da sua palavra”.

[27] Isto é, os que têm origem diferente.

[28] Tácito quer dizer que os germanos não trabalhavam a terra, isto é, não a adubavam para produzir mais do que poderia dar sua natural fertilidade.

[29] Caio Júlio César (100-44 a.C.), autor dos Commentarii.

[30] O Reno.

[31] Os boios habitavam o Bourbonais; os araviscos, o Palatinavo; os pilos, a Baixa-Hungria; os osios, o ducado de Oels, na Alta-Hungria.

[32] Os treviros ocupavam a antiga diocese de Trèves; os nérvios, em Cambresis e no Hainaut; os vengiões estavam estabelecidos na margem esquerda do Reno com Borbetomagus (Worms) por capital; os tribicos habitavam a planície da Alsácia; seu núcleo principal era Breucomagus (Brumath); os nemetes, cujo nome parece céltico (“habitantes do bosque sagrado”) residiam no vale do Novismagus (Spiro).

[33] Agripina, a Jovem (15-59 d.C.), sobrinha e mulher do imperador Cláudio (10 a.C.-54 d.C.).

[34] A ilha formada pelo Reno, Vahal e Mosa.

[35] Isto é, da aliança com os romanos.

[36] Compreende-se toda espécie de ofensiva e defensiva, porque no original se lê: tela atque arma.

[37] Os matiacos se estabeleceram principalmente ao sul do Taunos, nos vales do Mosa e do Reno. As fontes de Wiesbadem se chamavam “fontes Mattiaci”, ou aquae Mattiocae. Os matiacos ocupavam uma parte da Weteravia, uma parte de Hesse, do país de Isemburgo e do Fulde. Este nome se encontra um pouco adulterado no de “Magpurg”, cidade deste cantão.

[38] Que pagam dízimo dos frutos reservados para a gente guerreira e de que não podiam gozar os inimigos.

[39] De acordo com alguns comentadores, catti e hassi são a mesma palavra. O país dos catos ou hassos era em grande parte o que depois se chamou Hesse. Na parte da Holanda onde o Reno se perde nos areais, há um burgo denominado Catwik que, acredita-se, seja uma antiga povoação dos catos, Cattorum Vicus.

[40] O “Valor”, personificação da divindade.

[41] “Valor” entende-se aqui mais uma vez como uma entidade personificada.

[42] Os romanos, que usavam o cabelo cortado e a barba feita, consideravam aquele costume bárbaro falta de asseio.

[43] Os usipios ocupavam, ao que parece, o ducado de Cleves, além do Reno e uma parte do Munster. Os tuncteros estavam radicados no antigo ducado de Berg e no ducado de Mark.

[44] Os bructeros ocupavam a Westfália e o país de Overissel, isto é, entre o Ruhr, o Lipo e o Ems. Os chamavos, a região de Osnaburgo; os agrivários, o principado de Mindem e o condado de Schawenburg.

[45] Nada há de preciso a respeito da região ocupada outrora pelos dulbiginos e pelos casuários: habitavam cerca das nascentes do Lipo e às margens do Weser.

[46] Os frísios, divididos em “grandes” e “pequenos”, se localizavam nas costas do Mar do Norte, do Lago Flevo ao Ems.

[47] Nos anos 12, 13 e 16 de nossa era, isto é, durante as campanhas de Druso e Germânico.

[48] Estreito de Gibraltar.

[49] Os chaucos estavam estabelecidos na comarca compreendida ao este, entre o curso inferior do Elba e o do Weser e a oeste, entre a embocadura do Weser e do Ems.

[50] Entre o Elba e o Weser.

[51] Nenhum autor contemporâneo além de Tácito fala dos fosios.

[52] Chamava-se ainda o país do “Kersoneso Címbrico”: o Hotein, a Jutlândia e o antigo ducado de Sleswik.

[53] No ano 98, data em que foi escrito este livro.

[54] De Arsace, fundador da monarquia dos partos, após a ruína da dominação macedônica.

[55] Filho de Orodo, rei dos partos: assassinado por Ventídio em pleno campo de batalha, no ano 37 a.C., no mesmo dia em que, quinze anos antes, Crasso foi massacrado.

[56] Antigo mercador de bestas e fornecedor de guerra durante as campanhas de César nas Gálias. A proteção do general o elevou a cônsul, no ano 44 a.C.

[57] Esta frase alude a muitos fatos. Primeiro, a batalha de Verceil ganha por Mário contra os cimbros em 101 a.C. Depois, as campanhas de César contra Ariovisto, contra os belgas, contra os usipos e os tencteros, contra os sicambros e os suevos (de 58 a 53 a.C.). Também as expedições de Druso, de Tibério e de Germânico na Germânia (de 12 a.C. a 16 d.C.). Por fim, a ridícula empresa de Calígula (37 d.C.?). Consulte Suetônio (As vidas dos doze Césares).

[58] Alusão à revolta de Batavo Civilis.

[59] Os suevos se estendiam pelo país imenso que ficava entre o Elba, o Vístula, o Báltico e o Danúbio. Este nome ainda se conserva no de Suábia, região que os marcomanos, povo também suévico, habitavam antes de terem passado para a Boêmia.

[60] Os semones ocupavam uma parte da Pomerânia, do Brandeburgo e do Lusaco, isto é, entre o Elba e o Oder.

[61] “Consagrado pelos áugures dos seus pais e por um antigo terror”: o verso de Virgílio que, naturalmente, foi citado de memória por Tácito é este: Relligione patrum et prisca formidine sacram.

[62] Assim chamados em virtude de sua barba crescida. Acredita-se que habitavam entre o Mittelmark, na parte do antigo ducado de Magdeburgo, além do Elba.

[63] Destes sete povos, os três últimos são inteiramente desconhecidos. Os quatro restantes viviam nos arredores de Slesnoick e no país ainda chamado “Anglen”.

[64] Na língua anglo-saxônica hearth, ainda significa “terra”.

[65] É possível que Tácito se refira nessa passagem à ilha de Rugen; ali existe um profundo lago que foi objeto de superstição daqueles povos.

[66] A Paz do Senhor, tantas vezes proclamada pelo clero no século XI, é outra forma histórica desse antigo costume.

[67] Os hermonduros ocupavam o antigo principado de Anahalt, o Voitland, o Saxe e uma parte da Mísnia e da Francônia.

[68] Augusta Vindelicorum, em Augsburgo-sobre-o-leste.

[69] Isto é, sem estarem submetidos à vigilância romana.

[70] Parece que Tácito confundiu o Elba com seu grande afluente da margem esquerda, o Saale, que nasce na Turíngia, no Fichtelgebirge, pois o Elba origina-se nos Montes Gigantes.

[71] Os nariscos ocupavam a parte da Baviera que fica entre a Boêmia e o Danúbio. Os marcomanos, a Boêmia, os quados, a Morávia, e parte da Áustria, compreendida entre o Danúbio e a Morávia.

[72] Maroboduo foi rei dos marcomanos e depois aliou-se aos romanos contra Armínio, como se depreende nos Anais de Tácito (II, 46). A respeito de Tudro, nada se sabe.

[73] Em seus Anais, Tácito nos informa que a política dos romanos visava, antes de tudo, converter os reis de diferentes nações em instrumentos de sua própria ambição.

[74] Os marsignos se localizavam nos arredores de Glatz, de Jegendorf e de uma parte da Silésia, abaixo dos marsignos, e uma parte da Hungria; os osos, a parte da Hungria que se estende até ao Danúbio e que fica sob os gotunos; os búrios, o monte Krapach e as nascentes do Vístula.

[75] Sob o nome de sármatas os antigos compreendiam todos os povos habitantes da Polônia e da Rússia do oeste e do sul.

[76] Para bem se compreender o pensamento de Tácito é preciso recordar a resposta de Sólon a Creso, rei da Lídia: “O povo que tem ferro deve mandá-lo ao que somente possui ouro.”

[77] Os lígios estavam estabelecidos na Silésia, na Prússia e na Polônia, sobre as margens do Vístula. Faziam parte dos sármatas.

[78] Os ários, como já dissemos, habitavam o curso superior do Oder; os helveções, entre o Oder e o Vístula, bem como os manimos, os elísios e os naharvalos.

[79] O costume de pintar o corpo era geral em todas as nações selvagens. Júlio César disse que os britanos pintavam o corpo, o que os tornava “horríveis quanto à pele”.

[80] Os rúgios radicavam-se nas margens do Báltico. O nome desta tribo revive ainda no da pequena cidade de Rugenwald, bem como na ilha de Rugen. Os lemóvios, germânicos, residiam onde é agora Stolpe, Lavenburgo e Dantzig. Os suiões eram senhores da Suécia e das ilhas da Dinamarca.

[81] O que Tácito revela aqui a respeito da marinha dos suiões constitui uma antecipação dos prodigiosos armamentos que, cinco ou seis séculos após, eles iriam fabricar para usá-los nas suas novas invasões e novas pilhagens.

[82] Tácito parece aludir ao mar Báltico e aos golfos da Finlândia e de Botnia, que, por causa do gelo, é impraticável durante o inverno. Quanto ao fulgor do sol, ninguém ignora que nos climas do norte, em algumas latitudes, o sol domina o horizonte durante vinte a quatro horas. Em outras, mais ao norte, um mês inteiro e no pólo, seis meses.

[83] “A natureza termina ali”: os antigos acreditavam que o oceano era o limite extremo do mundo e que além daquele conhecido deles não havia outros.

[84] O mar suévico é o Báltico. Os éstios eram oriundos da Prússia ocidental e das províncias bálticas.

[85] É curioso observar como entre os germanos se espalhava a mesma superstição relativa aos amuletos que tanta voga adquirira na Grécia e em Roma e cujo prestígio ainda se conserva entre muitos povos.

[86] Plínio dá também ao âmbar ou succinum o nome de glesum e observa que se encontra em abundância nas ilhas do Mar do Norte e com especialidade em uma conhecida pela designação de Glessaria.

[87] A ciência moderna confirma em grande parte as opiniões de Tácito. O âmbar amarelo (succinum) se encontra principalmente nas costas do Mar Báltico e provém de uma conífera (pinitas succifer), cujas células e raios medulares estavam cheios de succinum. Esta planta, porém, não sobreviveu ao mundo antediluviano.

[88] Behrendt conta mais ou menos seiscentas espécies destes insetos, na maior parte desconhecidos na Europa setentrional.

[89] A atual Noruega.

[90] Os peucinos, que Plínio chama de bastarnos, ocupavam na Germânia oriental as imediações da ilha (hoje Piczina) formada pelos braços do Danúbio nas proximidades do Mar Pôntico (Mar Negro). Os venedos habitavam a Samogicia e a Lituânia. Os fenos são antepassados dos finlandeses e dos suecos atuais.

[91] Tácito se refere aos habitantes da Lapônia. Hoje se julga que isso deu lugar à fábula por ele enunciada: o traje daqueles povos que, vivendo nas regiões do gelo e da neve, se cobre com os despojos dos animais que matam na caça e que lhes fornece alimento e vestido, por isso, mais se parecem com feras do que com criaturas racionais.